terça-feira, 30 de novembro de 2010

Heeeeeelllp!!! Heeeeelllp!!!

O público mais crítico da área cinematográfica sempre apresenta sérias reservas quanto a comédias românticas. Elas denotam o fato de que a mulher moderna, mesmo muito mais independente e dotada de capacidade inquestionável de liderar, seja a família, a empresa ou a própria vida, ainda é dependente do sonho da “cara-metade”, da tampa da panela. Mas, recentemente, a audiência feminina presente nas sessões de um certo fenômeno de bilheteria faz refletir e admirar esse gênero cinematográfico que muitos repudiam pelo comodismo narrativo e pela intenção que sempre soa medíocre e mercenária. Chegou (e, felizmente, já saiu) dos cinemas o filme “Jogos Mortais VII”, que leva o subtítulo de “O Jogo Completa Seu Ciclo” (em outras palavras, o “Episódio Final”). A princípio, se pode imaginar que as salas teriam muito mais homens que mulheres, mas não. E é isso que mais surpreende/assusta. O contrário da feminilidade açucarada é a masculinização azeda e troglodita (típica do bordão "macho encara qualquer parada"). Sendo assim, o oposto da comédia romântica é o filme de ação brutal, daqueles que antigamente eram protagonizados por Charles Bronson e Clint Eastwood (antes de virar gênio). Para se mostrarem companheiros, homens passaram a acompanhar esposas e namoradas em exibições de filmes água-com-açúcar, e vice-versa: elas fizeram a via contrária, mostrando-se também democráticas e dividindo o saco de pipoca para apreciar socos, chutes, tiros, Pow! Soc! Crunch! Argh! Etc! Sem entrar nos méritos quanto ao gosto cinematográfico, mas o fato é que nesse compartilhamento "estético" nenhum dos dois lados sai lucrando muito. E, talvez, quem leve mais prejuízo é o lado feminino, que, com o passar do tempo, passou a acreditar que para competir com o sexo masculino precisa elevar sua testosterona. Só que mulher não precisa ser macho, aliás, não deve, de jeito nenhum. É o mesmo que alguém achar que deve rastejar para conseguir matar baratas.

Pois bem, depois de duas horas de absoluta grosseria e sadismo em doses cavalares e desnecessárias na tela, se constata que realmente tem homem muito mais feminino que muita mulher por aí. E que sensibilidade está cada vez mais se tornando sinônimo de fragilidade, ou até de questionamento quanto à opção sexual do homem que se diz sensível. Talvez esteja com os dias contados uma cena clássica: o namorado leva a namorada no filme de terror para ela pegar sua mão e esconder a face em seu ombro quando o vilão se aproxima da vítima. Os papéis podem estar se invertendo. “A violência é tão fascinante e nossas vidas são tão normais”, cantava Renato Russo, “afinal amar ao próximo é tão démodé”, completava, mas será que empatia virou defeito? Que fomos tão abrutalhados ao ponto de nem mesmo as mulheres poderem se dar ao luxo de sentir compaixão? Que se compadecer da angústia e se revoltar com a crueldade viraram sinônimos de fragilidade e vulnerabilidade?

Para explicar melhor a quem não assistiu a nenhum dos episódios da mais bem sucedida franquia de terror de todos os tempos, logo abaixo estão algumas justificativas de inquietação quanto à dose exacerbada de truculência e, em especial, quanto à bizarra sedução sentida pelo público feminino. Com tudo o que será colocado a seguir, é importante deixar bem claro que o que assusta mais não é o que se passa do lado de lá (na tela) mas sim do lado de cá (na platéia).

Os dois roteiristas da série podem ser classificados como “gênios”: inventaram a lobotomia sem cirurgia. As sandices se passam na tela, mas a principal vítima é o público. Sofre amputação cerebral sem corte. Constantemente se fala de forma desfavorável quanto à violência gratuita, mas muito pior que ela é a violência com falsa justificação, e é o que o filme faz o tempo todo. São racistas? Ah, então merecem se foder, deixa eu atropelar, arrancar a mandíbula, os braços e a pele. Ah, ela é piranha? Corta a traíra no meio. Ah, o cara é mentiroso? Merece ver todos os amigos torturados até a morte. Além disso, as vítimas sobreviventes do vilão Gigsaw (que, pasme, para muitos é uma espécie de justiceiro) chegam a se manifestar como gratas por aprenderem a viver a vida depois de terem passado por momentos de horror absoluto. Alguém consegue engolir? Realmente, é preciso ter estômago para suportar tanto os esquartejamentos físicos quanto os de raciocínio lógico. E, para ilustrar tantas boas intenções, você “aprecia” de tudo: olhos sendo furados, anzol arrancado do estômago por um barbante que escapa pela boca, serra elétrica rasgando um abdômen até fazer cair o intestino, cremação de gente viva, e por aí afora, tudo em big close e com berros ecoando em dolby surround. Um show de vísceras voando na tela e de neurônios despencando nas poltronas. Como na Roma antiga, a plateia deliberadamente testemunha a tudo sem qualquer constrangimento, se entusiasmando e delirando a cada nova esquete de carnificina. Paga-se para engolir tripas com pipoca e Coca-Cola. Um espetáculo de iguarias visuais indigestas que até de graça seria caro. A propósito, converta o valor pago na bilheteria em coisas úteis que você poderia adquirir pelo mesmo preço e você terá vontade de torturar os produtores da série, por exemplo: um livro em formato HQ da Disney com adaptação de três obras de Shakespeare sai por metade do valor. Daí sim, é de se cortar fora a mão que sacou a carteira.

Alguns alegam assistir devido à inteligência da trama, como se isso pudesse de algum modo atenuar ou justificar uma visita a um açougue humano. Aliás, convenhamos, se a história fosse realmente inteligente não precisaria apelar para a barbárie, vide “Seven” que não exibe os crimes sendo executados mas é recheado de suspense e encadeamentos estratégicos instigantes. O mesmo vale para “Demônio”, que recém-estreou nos cinemas e não exibe ninguém sendo morto, mas segura a tensão da audiência do início ao fim (isso com cinco personagens que ficam quase o tempo todo dentro de um elevador). A propósito, um bom conselho a quem acha Jogos Mortais inteligente é que fosse trocar idéias com o ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, aquele que amputou braços, pernas e pênis de um mecânico, furando-lhe depois os olhos com pregos na frente do filho adolescente, o qual foi queimado vivo logo em seguida. Certamente seria uma conversa repleta de propostas para o próximo filme da série (ou vai dizer que você caiu no conto do “Episódio Final”?!). Aliás, aqui vão sugestões para o próximo petardo da franquia: "Jogos Mortais VIII - O Jogo Nunca Termina", ou então “Jogos Mortais VIII – Prorrogação com morte súbita”. Originais, criativos e... honestos como a própria série.

O mais grotesco: este episódio foi produzido em 3D. Alguém é capaz de explicar o que uma pessoa, que não seja médico legista ou psicopata, pode achar de estimulante em se ver um pedaço ensanguentado de intestino humano em três dimensões ao invés de duas? Ao final da sessão, quando jogar seus óculos no cesto em frente à sala de exibição, você (se for minimamente sensível) achará que deveria deixar ali também seus olhos. Você sai do cinema um pouco parecido com os personagens do filme: se sentindo mutilado. Aleijado em seu lado humano. Neste ponto, o cartaz mais coerente dos filmes da série é o que exibe uma cabeça em uma balança, talvez uma alusão ao público, que deve questionar se seu intelecto vale o quanto pesa. Curiosa também a escalada de violência no cinema que década após década atinge patamares imprevisíveis. Em “Laranja Mecânica”, considerado violento para a época em que foi lançado, o protagonista vivido por Malcolm McDowell é obrigado a assistir a cenas bárbaras com um equipamento que lhe arregala as pálpebras, mas, atualmente, ninguém precisa prender um cidadão para fazê-lo ver truculência, ele o faz deliberadamente. No filme de Stanley Kubrick, o personagem vomita ao ver as imagens devido à aplicação de substâncias que o nauseiam, mas, no momento presente, o público não vomita... saliva.

O ponto irônico do filme é que, mais do que mostrar sofrimento, ele é altamente sofrível. Principalmente nas interpretações. Basta dizer que a performance mais aguardada foi a de uma personalidade que nem é do meio cinematográfico: Chester Bennington, vocalista do Linkin Park, cuja atuação é brevíssima e, como a maioria dos personagens, fica apenas berrando "Heeeeelllp!!! Heeeeelp!!!" e fazendo caras e bocas de pavor. Quer outra ironia? Na vida real, Bennington já tentou suicídio, o que o torna, segundo as regras sádicas de Jigsaw, alguém merecedor de ser vítima em seus jogos. Estranho como os iguais se atraem, não?

Já que estamos falando das regras do jogo, fica aqui o lado de humor do filme para aqueles que acreditam que ele só trata de tragédias perversas. JM VII começa com dois rapazes traídos que têm de se decidir entre matar um ao outro ou matar a mulher que os brindou com volumosa galhada. Eles optam por deixar a moçoila ser decepada ao meio por uma serra, numa versão punk de justiça salomônica. Mas quem disse que a audiência do filme quer saber de justiça? Quanto mais salomônica. Para começo de conversa, nem sabe quem foi Salomão. E o senso de humor de Jigsaw é mesmo impagável: em outra situação, para castigar um escritor que mentiu já ter sobrevivido em seus jogos, o vilão mata... a esposa do sujeito, que nem ao menos sabia da safadeza do marido. É mais ou menos o mesmo que alguém ter uma intoxicação alimentar e se vingar em cima da mãe do peixe podre.

Impressiona o fato de que todos que assistem ao filme se sentem seguros, pois não estão no lugar das vítimas, sem se dar conta de que, no decorrer de suas vidas, também vivenciarão Jogos Mortais: passarão por um sequestro relâmpago, correrão um risco de estupro, serão tratados por quimioterapia para curar um câncer, etc. Em cada situação dessas, bem que poderia haver, mentalmente, um Jigsaw interno dizendo: “Fernanda, durante a vida toda você se alimentou mal, desrespeitando seu corpo e sua saúde. Agora terá de passar por uma cirurgia de intestino que durará cinco horas. Se o médico for habilidoso em extirpar o tumor, você voltará a viver normalmente, mas, se isso não ocorrer, será colostomizada e morrerá em lenta agonia”. Outra possibilidade: “Marcos, você nunca praticou exercícios, sempre foi um sedentário, pouco valorizando seu físico perfeito. Agora está preso nas ferragens de seu carro, neste acidente em que foi o responsável pela debilidade dos próprios reflexos. Seu celular foi parar no piso do banco de trás. Você terá de se esticar e encontrá-lo no escuro para chamar por socorro em menos de dois minutos, pois logo perderá muito sangue e desmaiará. Se isso acontecer, só será encontrado quando ossos e carnes das panturrilhas já estiverem sem condições de sofrer cirurgia, precisando amputar as duas pernas ou morrendo de hemorragia”. E aí, será que os admiradores da série continuarão achando divertido? E quando esses jogos mortais da vida real acontecerem com amigos, familiares e pessoas próximas, irão compartilhar da mesma empolgação que vivenciaram na sala de cinema? A mentalidade da audiência padrão do filme é tão estreita, e sua capacidade de decodificar metáforas tão limitada, que forma-se uma blindagem em torno do potencial associativo (talvez até por auto-proteção), impedindo-a de perceber que ali, à sua frente, ficção e realidade não se encontram tão distantes uma da outra como parecem.

Como dizia a Denise Stoklos, brasileiro tem vocação para platéia. E ela comenta isso no mau sentido, somos passivos. Gostamos de ficar vendo ao invés de vivendo. É uma “não-vida”, como ela mesma classifica. Neste falso universo, sutileza não parece ser sinônimo de emoções fortes. Daí, provavelmente, vem o sucesso de Jogos Mortais. A série é tão sutil quanto a motosserra de Hildebrando e as pauladas dos irmãos Cravinhos nos crânios do casal Richthofen. E celebra a morte para quem já é adepto da “não-vida”. Chega a ser morbidamente coerente.

Quanto à sedução junto ao público feminino, fica difícil de entender (talvez seja melhor nem querer entender). Mas, depois de se constatar o aumento da presença feminina em filmes reservados ao público masculino de gosto duvidoso (duvidosíssimo), o melhor é parar de condenar as comédias românticas. Que elas sejam produzidas em profusão, pois ao menos reservam espaço para a sensibilidade, por mais ingênua que se apresente. E que as mulheres nunca deixem de ser românticas. Que nunca se rebaixem achando que precisam ser toscas para agradar ao gênero masculino. O mundo é cheio de injustiças porque a maioria dos governantes é composta por homens. Boa parte deles faz o gênero “macho que é macho”, e promove seus jogos mortais diariamente, seja enviando tropas para a guerra ou lançando estratégias de segurança pública que visam dizimar a violência usando de truculência ao invés de fomentar programas de ensino, cultura, artes e esporte junto ao público jovem – vide o recente episódio da invasão ao Morro do Alemão no Rio de Janeiro. O mundo está repleto de Jigsaw.

A escritora Hannah Arendt, uma intelectual de origem judaica que se refugiou nos Estados Unidos durante a II Guerra Mundial, afirmou que a banalização da violência coloca o ser humano dito comum no mesmo patamar daqueles que promoveram o nazifascismo. Ao comentar o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, Arendt fez questão de afastar a hipótese de que ele fosse um monstro, um sádico ou um carrasco. Ela o descreveu como “uma pessoa de terrificante superficialidade, um indivíduo banal”. Para Arendt, ficava evidente que “teria sido muito reconfortante acreditar que Eichmann era um monstro”, mas “o problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais”. Em síntese, a percepção dela é a de que ignorância e brutalidade andam de mãos dadas. Para se abraçarem, é só uma questão de oportunidade. Considerando uma bilheteria de US$ 22,5 milhões só no final de semana de estreia de Jogos Mortais VII, temos de torcer para que Arendt esteja errada. Ou melhor, temos de rezar.

O efeito coletivo de uma obra assim pode nem ser tão nefasto em termos gerais. Dificilmente haverá uma nova versão de Columbine com garotos torturando colegas e alegando terem sido influenciados pelo filme, por exemplo. Mas, para se ver uma produção assim sem sair machucado na alma, é necessário anestesiar a empatia, caso contrário ser plateia é um ato insuportável. Só que empatia é uma reação básica típica dos seres humanos, não pode nem deve ser desplugada. Cães bem tratados ladram para cães morimbundos porque não conseguem se colocar no lugar deles e sentir as sarnas que lhes corroem a pele. Sermos corteses, gentis e cordatos não é uma questão apenas de boa educação, como se pensa, mas sim de se colocar no lugar do outro. Queremos tratar as pessoas bem não porque papai e mamãe assim ensinaram, mas porque queremos também ser tratados bem. Quando vemos uma senhora exausta carregando suas sacolas de compra no caminho para casa, nos sentimos compelidos a ajudá-la, porque sabemos o quanto é sofrida aquela situação ao nos colocarmos em seu lugar. Alguém acredita que uma pessoa que assiste friamente (ou entusiasmadamente, o que é pior) a outra cortando a própria perna com um serrote é capaz de se comover com a imagem da velhinha carregando compras?

Enfim, os últimos suspiros de cada vítima da tela são os últimos suspiros do intelecto e da sensibilidade de cada pagante na sessão de cinema. O filme é medonho (difícil dizer se mais pela violência ou pela ignorância, que, convenhamos, é algo ainda mais digno de temor). E viva a democracia do cinema digital, que pode promover a produção de idéias muito mais edificantes com muito menos dinheiro e muito mais gratificação na alma de quem a realiza, mesmo que se limite a exercer influência na vida de uma audiência muitíssimo menor. É a prova de que é muito melhor fazer o bem em pequenas proporções do que o mal em escala hollywoodiana.

Mario Lopes

4 comentários:

  1. O Clint Eastwood sempre foi gênio, nem vem. E o que você foi fazer na sala onde passou esse filme, professor? PelamordeDeus! eu malmente vi o primeiro, imagina o sétimo! Hahahahah! Minha prima foi ver e achou bom, vai entender...

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  2. Poxa Chaler Bronson e Clint Eastwood... Sinceramente falando, O Clint é um puta gênio, isso sem duvida nenhuma, mas gosto mais dele antes de ser diretor.
    Então o primeiro eu engoli, mas os outros... é f... realmente.
    Mas dá dinheiro, sendo ruim ou não, vai continuar, como continuo sexta-feira 13, que também não gosto. Claro, INFELIZMENTE, e temos que ouvir pessoas falar que isso é bom, principalmente eu que trabalho em locadora, concordo com muita merda, e não é 10 pessoas, é muitas pessoas, e como vende lá no cinema, vende lá na locadora, e pra mim está tudo bem, ganho disso.
    OBRIGADO MARIO.

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  3. Foi um dos piores filmes que j[a vi na minha vida. Este foi muuuuito mais brutal que os anteriores. Neste filme eles nao pouparam a audiencia, mostraram tudo, ate o final, sem cortes. Lamentavel.

    Achei brilhante sua comenatario Mario: "os últimos suspiros de cada vítima da tela são os últimos suspiros do intelecto e da sensibilidade de cada pagante na sessão de cinema"

    Resenha impecavel.

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  4. Querido Mario:
    O que podemos esperar de uma geração de Zumbis, eu realmente acredito que eles não sentem nada.
    Até ridicularizam as pessoas que sentem, sorriem, choram são os Emos, ( Emotivos)essa gente vai acabar como merece. Provando do seu próprio veneno. " Eu quero mais que eles se danem"

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